As demandas frívolas na responsabilidade médica
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Os critérios cada vez mais maleáveis de responsabilidade na doutrina e jurisprudência têm levando a uma ampliação excessiva e pouco criteriosa da responsabilização do profissional de saúde, nas assim chamadas “ações por erro médico”, resultando no aumento da litigiosidade e judicialização, quase sempre buscando “vitimizar” aquele que não obteve o resultado esperado decorrente da atuação médica.
De fato, são muito frequentes os casos em que são propostas ações contra médicos e hospitais desprovidas de qualquer fundamentação no direito material, em verdadeira “aventura jurídica”. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, nos últimos dez anos o país teve um aumento de 1.600% no número de processos judiciais (civil e criminal) envolvendo médicos.
É esperado que qualquer um que exerça seu direito de acesso ao judiciário o faça dentro dos limites da boa-fé, da ética e da finalidade social, ou seja, dentro dos padrões de prudência e diligência, apresentando com precisão e clareza os devidos fundamentos fáticos e jurídicos (especialmente se amparado por advogado), para não prejudicar injustamente a parte contrária.
O exercício da demanda não é um direito absoluto, pois se acha, também, condicionado a um motivo legítimo, à proporcionalidade e razoabilidade. O uso indevido deste direito, realizado sob a máscara de uma aparente licitude, pode e deve ser considerado abusivo.
Infelizmente, há no meio jurídico o entendimento majoritário que o exercício regular de um direito, como o de processar um profissional de saúde pela mera suposição de que houve um “erro médico”, não pode gerar responsabilidade ao autor da demanda (art. 186 do Código Civil).
Nós discordamos deste entendimento, pois a lei diz que também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes (art. 187 do Código Civil).
O processo é um instrumento de justa composição do litígio e não apenas simples eliminador de conflitos. Assim, pelo princípio da boa-fé objetiva, o exercício do direito de ação, se irregular, pode efetivamente gerar responsabilidade e, consequentemente, o dever de indenizar a parte injustamente acusada.
O exercício regular do direito de ação deverá sempre ser aferido segundo os padrões de boa-fé, razoabilidade, proporcionalidade e, é claro, das evidências concretas. É esperado que aquele que ingressa com uma ação contra um médico ou hospital o faça respeitando deveres gerais de cautela e buscando realçar a lealdade processual, tais como verificar previamente como se deram os fatos e os resultados frente às circunstâncias, expor os fatos como realmente ocorreram, não formular pretensões sem fundamento, não utilizar expressões injuriosas quanto aos agentes no processo, entre outros. A nosso ver, um direito, apenas por estar formalmente assegurado, não autoriza seu titular a excedê-lo e induzir o juízo ao erro, bem como provocar danos a terceiros de modo malicioso, injusto e socialmente perverso.
De acordo com nossa doutrina, pode existir o abuso do direito pela parte autora mesmo inexistindo a intenção (dolo) de prejudicar a parte contrária. O indivíduo, quando exerce seu direito de ação, pode sobrepujar os seus limites, e acaba cometendo abusos, seja por descuido ou por excesso, equiparando assim a sua conduta ao ilícito, e deve ressarcir os prejuízos causados à outrem.
O modo de exercerem-se os direitos, faculdades e poderes pode efetivamente levar à contrariedade ao Direito compreendido como ordenamento. Essa contrariedade, porém, não precisa ser dolosa ou culposa, basta que seja imputável, isto é, atribuível a alguém.
Assim, para que haja abuso do direito não é indispensável que se descubra no autor do prejuízo causado a outrem a intenção de prejudicar, sendo bastante que se observe na conduta a ausência de precauções que a prudência de um homem atento e diligente lhe teria inspirado. Isto é particularmente verdadeiro nos casos em que há a assessoria técnica de um advogado, que tem o dever ético e legal de não levar seu cliente a incorrer em “aventuras jurídicas” (artigo 2º, VII, do Código de Ética e Disciplina da OAB).
O profissional acusado, nestes casos, deve verificar cuidadosamente se o exercício do direito de ação do requerente foi regular ou abusivo. Se este exercício foi irregular, é ato ilícito e, como tal, determina responsabilidade civil, devendo o Autor da ação indenizar o profissional requerido, sem prejuízo de outras sanções.
No nosso entendimento, o direito positivo não é uma licença para abusos ou descuidos. Não existe, no direito moderno, a concepção, irrestrita e absoluta, do direito subjetivo como um poder incondicionado, sujeito apenas aos humores e arbítrios do titular. Por este motivo sustentamos que cabe à parte autora e, principalmente, ao seu advogado a busca por auxílio técnico com embasamento jurídico e científico antes de perpetrar uma demanda. Ora, é esperado pela boa-fé e pela eticidade que antes da propositura de uma ação que se conheça a realidade e determinação do objeto da prestação que se discute.
Entendemos também que, em se tratando de acusações contra um profissional médico, o magistrado, ao analisar o caso concreto, deve, à luz da lógica do razoável, proceder a uma verificação do exercício do direito de ação do Autor, ponderando-o não só com a acusação e a defesa, mas com os demais valores inerentes ao caso, especialmente a honra e reputação do profissional demandado.
De fato, o abuso do direito de ação leva à inexorável violação do direito à dignidade dos profissionais acusados, princípio fundamental do Estado previsto no artigo 1º, inciso III da Constituição Federal brasileira. A base constitucional do instituto deve ser analisada em conjunto com a norma da qual decorre o direito à reparação decorrente de danos morais, o artigo 5º, inciso X também da CF, segundo o qual “são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material e moral decorrente de sua violação”.
É importante observar que o abuso de direito é previsto no artigo 187 combinado com o artigo 927, ambos do Código Civil brasileiro, sendo, ao nosso ver, matéria de ordem pública, vez que previsto em lei, tendo caráter cogente e, consequentemente, deve ser conhecido de ofício pelo juiz, mesmo que não suscitado pelas partes.
É de conhecimento de todos que o principal objetivo da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito. Assim, ao mesmo tempo em que ela se empenha em tutelar a atividade daquele que se comporta de acordo com o Direito, reprime a conduta daquele que o contraria.
O Código de Processo Civil houve por bem tipificar as condutas geradoras da litigância de má-fé, e impôs condenação em multa e em ressarcimento ou reparação de danos (art. 79 e seguintes, CPC/2015). O reconhecimento e a condenação por litigância de má-fé pode ser dar a pedido de qualquer interessado ou mesmo por iniciativa própria do Juiz que tem poderes para tomar todas as providências necessárias para impedir atos que possam macular o processo ou o procedimento.
No entanto, infelizmente, em questões envolvendo “erro médico”, o Poder Judiciário brasileiro é absurdamente tímido na aplicação das devidas sanções que deveriam punir severamente quem concorre para aventuras jurídicas e lides temerárias, especialmente se amparado pela “justiça gratuita” e por um profissional do Direito. Justamente em função desta timidez, este tipo de conduta amplia-se, criando-se verdadeiras “loterias jurídicas”, e massacrando sistematicamente inúmeros princípios básicos do Direito, tais como a lealdade, a boa-fé e o respeito para com a verdade dos fatos, apenas para mencionar alguns.
Estatísticas recorrentes demonstram que a grande maioria das ações contra médicos são julgadas improcedentes, em que pesem os prejuízos morais, sociais, profissionais e econômicos indeléveis decorrentes do processo contra estes profissionais, e que jamais serão recompostos. De fato, de cada quatro médicos acusados, três são processados injustamente e um resultado favorável na demanda não significa exatamente um ganho para o profissional, pois os médicos processados acabam tendo de arcar com o ônus de provar sua inocência, sem poder reaver a quantia gasta no processo, porque a maioria esmagadora dos pacientes-autores é protegida pelos benefícios da justiça gratuita.
O profissional médico é merecedor, como qualquer ser humano, do mesmo respeito à dignidade de sua pessoa, ou seja, à integridade psicofísica e a garantia de não vir a ser marginalizado por algo que não deu causa. Se não violou seus deveres profissionais, serão seus interesses que devem ser considerados merecedores de tutela jurídica, a fim de ver preservada sua dignidade humana e profissional.
Autorizada a reprodução total ou parcial deste artigo, desde que citada a fonte, nos seguintes termos: GURFINKEL, Valter. As demandas frívolas na responsabilidade médica. Disponível em <https://medicosperitos.com.br/artigos/42/As-demandas-frivolas-na-responsabilidade-medica>. Acesso em 23/11/2024.
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