A Tabela da SUSEP e suas limitações em perícias médicas
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Os médicos peritos enfrentam constantemente questionamentos quanto aos efeitos de eventuais danos a um indivíduo após doença ou acidente. Não é incomum que seja solicitado aos peritos que estabeleçam, além da verificação da existência e da gravidade de um dano e suas sequelas, também a avaliação de eventual incapacidade que acomete o sujeito, especialmente nos casos de ações judiciais cíveis e trabalhistas. Também é muito frequente que os próprios juízes já estabeleçam, quando da requisição da perícia, que eventuais alterações funcionais e restrições laborativas sejam mensuradas através da Tabela da SUSEP.
Entretanto, o uso da Tabela da SUSEP como metodologia de avaliação de função de órgão ou sistema, bem como restrição ou incapacidade laborativa decorrentes de doença ou acidente, ainda que por analogia, é absolutamente incorreta e leva a importantes vieses técnicos, especialmente quanto à ausência de confiabilidade inerente, haja vista que, dentre seus problemas mais graves, está o fato de a Tabela da SUSEP não considerar as funções específicas e as características profissionais individuais do sujeito afetado.
A avaliação da funcionalidade de um órgão ou sistema, a graduação de um dano e uma eventual restrição da capacidade de trabalho decorrente de doença ou acidente é, na realidade, extremamente complexa e exige o uso racional de ferramentas e métodos científicos que possam classificá-las e quantificá-las de forma individualizada, padronizada e, principalmente, justificada no caso concreto. Portanto, a correta metodologia de avaliação da funcionalidade orgânica e capacidade laborativa do periciando é fundamental frente às graves implicações pessoais, jurídicas, financeiras e éticas das partes envolvidas, inclusive do próprio perito frente à sua responsabilidade profissional.
Para fins didáticos, pode-se definir funcionalidade como a expressão que engloba as funções interativas dinâmicas de um ou mais sistemas orgânicos, atividades e participação. Por sua vez, incapacidade pode ser entendida como o termo que inclui deficiências, limitação ou restrição na participação em determinadas atividades dentro da faixa considerada normal. Funcionalidade e incapacidade devem ser compreendidas como expressões abrangentes que denotam os aspectos individualizados positivos e negativos sob uma ampla perspectiva biológica, profissional, normativa e social.
É muito comum em perícias médicas (especialmente na esfera da Justiça do Trabalho), que os peritos médicos façam a avaliação e mensuração de funcionalidade de órgãos e sistemas em casos de doenças e acidente pelos parâmetros verificados na Tabela da SUSEP (Superintendência de Seguros Privados, circular nº 029, de 20/12/1991). Muito frequentemente os peritos também usam esta Tabela para, a pedido do juiz, das partes e do Ministério Público, determinar o grau de uma eventual restrição ou incapacidade laborativa. Entretanto, a Tabela da SUSEP nunca esteve prevista na legislação brasileira como referência para quantificação da funcionalidade orgânica ou da capacidade laboral.
Na realidade, o principal equívoco no uso da Tabela da SUSEP em perícias médicas está na desconsideração de sua finalidade. A Tabela da SUSEP foi criada destinando-se única e exclusivamente para a padronização e fixação das indenizações devidas pelas seguradoras à pessoa acidentada, em percentual proporcional à importância segurada e grau de comprometimento patrimonial da parte do corpo atingida, definida conforme a topografia da lesão ou sequela, e nada mais.
Assim, por não considerar as características próprias e inerentes de cada órgão ou sistema, assim como não considerar a profissão, trabalho ou atividade laboral específica do sujeito afetado, os valores apresentados na Tabela da SUSEP não guardam qualquer relação de proporcionalidade com a funcionalidade, grau de incapacidade laborativa ou capacidade de trabalho residual após uma lesão ou acidente. De fato, a própria Superintendência de Seguros Privados deixa claro que a graduação de sua tabela é meramente securitária, e se dá independentemente da profissão, portanto, não serve para informar eventual grau de redução de capacidade laboral no caso concreto.
Melhor explicando, essa tabela foi desenvolvida exclusivamente para o mercado de seguros privados, estabelecendo um percentual fixo de indenizações relativas a perdas anatômicas dos segurados, oriunda de tabela contratual, sem levar em consideração as condições peculiares e particulares de cada caso concreto, que, por isso, não pode ser aplicada nos casos de indenização por incapacidade laborativa decorrentes de doença ou acidentes, mesmo que por analogia.
Do ponto de vista médico-pericial, a redução da capacidade funcional de um órgão ou sistema é completamente distinta da redução da capacidade de trabalho. Desta forma, é óbvio que pessoas com uma mesma doença, lesão ou sequela de acidente podem ter diferentes graus de funcionalidade, assim como pessoas com o mesmo grau de funcionalidade podem ter diferentes graus de capacidade de trabalho, dependendo da profissão ou atividade laboral. Assim, uma mesma lesão ou sequela de determinado órgão pode ter consequências totalmente diferentes em termos pessoais e profissionais, e a Tabela da SUSEP é absolutamente incapaz de indicar tais diferenças.
Suponha-se, a título de exemplo, que esteja em avaliação pericial o caso de uma pessoa que sofreu amputação traumática do 5º dedo (dedo mínimo) da mão esquerda decorrente de um acidente. Não é infrequente observar-se em laudos periciais, nestes casos, a conclusão de “incapacidade laborativa de 12% de acordo com a Tabela da SUSEP”, referindo-se ao percentual indenizatório correspondente à perda total do uso de um dos dedos mínimos ou um dos dedos médios, como descrito nesta tabela. No entanto, esta é uma conclusão absolutamente inadequada se não for levado em consideração outros fatores óbvios, como a profissão ou as características da atividade laboral do acidentado. Assim, se esta pessoa for um jogador profissional de futebol, não haverá incapacidade laborativa, pois a perda do 5º dedo da mão esquerda, apesar de representar uma determinada perda patrimonial corporal, em praticamente nada irá interferir na sua atividade profissional futebolística. No entanto, se esta pessoa for um pianista profissional, sua incapacidade poderá ser de 100% para esta atividade laboral específica.
Observa-se neste exemplo que, apesar de a lesão ser a mesma para ambos os sujeitos (jogador de futebol e pianista), ou seja, amputação traumática do 5º dedo (dedo mínimo) da mão esquerda decorrente de um acidente, e a Tabela da SUSEP indicar um percentual indenizatório fixo de 12% para ambos, as determinações quanto à capacidade laborativa podem ser totalmente diferentes, dependendo da profissão ou atividade laboral do acidentado, que pode ser desde a completa ausência de incapacidade (jogador de futebol) até a incapacidade total (pianista).
Portanto, a Tabela da SUSEP faz parte do conjunto de normas de seguro para aqueles que venham a sofrer um acidente pessoal, baseado em cálculos genéricos de indenização em caso de invalidez permanente, e não tem qualquer utilidade para a avaliação da repercussão na função de órgãos e capacidade profissional específica no caso concreto. A própria definição de “acidente pessoal” nesta tabela, e suas exclusões, são incompatíveis com a avaliação de funcionalidade e capacidade laborativa para fins pericais.
Desta forma, a inadequação da Tabela da SUSEP para uso pericial de avaliação de dano funcional e capacidade laborativa em casos de doença e acidentes é óbvia, pois os valores descritos nesta tabela, expressos em percentagem, baseiam-se tão somente na indenização da importância segurada frente à perda patrimonial, e não significam, de forma alguma, o “grau” funcional ou de repercussão na capacidade laborativa.
É importante que se entenda que, do ponto de vista médico-pericial, é impossível qualquer analogia, proporcionalidade ou paralelismo entre indenização, grau de incapacidade funcional e a incapacidade profissional na Tabela da SUSEP. Nenhum dos “valores” indenizatórios estabelecidos na Tabela da SUSEP têm qualquer embasamento ou validação técnico-científica, portanto, não podem ser utilizados como metodologia válida e justificável em perícias médicas.
Deve-se ressaltar também que a maioria das assim denominadas “incapacidades” após doença ou acidente não é total, ou seja, uma incapacidade pode ocorrer em diferentes graus e ter duração variável, dependendo, essencialmente, do órgão atingido e grau de sequelas, da idade, função e atividade do indivíduo; do tempo, do tipo, da qualidade e da aderência ao tratamento; os recursos terapêuticos ainda disponíveis para recuperação, a possibilidade de reabilitação, entre vários outros parâmetros técnicos a serem avaliados individualmente no caso concreto. Assim, voltando-se ao caso do pianista que sofreu amputação do 5º dedo da mão esquerda, ele poderá ser considerado definitivamente incapaz para tocar profissionalmente pianos, mas nada impede de ser capaz de exercer plenamente inúmeras outras atividades profissionais, o que deve ser adequadamente avaliado e descrito no laudo pericial.
Torna-se urgente, inclusive para preservar a integridade técnico-jurídica da prova pericial, que metodologias adequadas de avaliação da capacidade laborativa residual após doença ou acidente sejam implementadas, validadas e normatizadas, padronizando-se os algoritmos de avaliação e resultados. Infelizmente, não há, no Brasil, uma norma técnica ou jurídica que determine como deve ser feita a avaliação da funcionalidade e capacidade laborativa residual em casos de doença ou acidente, o que traz extrema variabilidade, subjetivismo e inconsistência nas conclusões, dependendo dos parâmetros utilizados pelo avaliador.
No entanto, estão disponíveis diversas publicações técnicas que permitem uma linguagem unificada e padronizada neste tipo de avaliação, mas que são muito pouco utilizadas no Brasil. Uma delas é o “Guides to the Evaluation of Permanent Impairment”, publicada pela AMA (American Medical Association), uma das mais respeitadas associações médicas do mundo, e oficialmente adotada pela legislação em países como a Austrália, Nova Zelândia, Canadá e Inglaterra. Outra publicação, muito utilizada na Europa, é a “Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde – CIF”, publicada pela Organização Mundial da Saúde, e já disponível na língua portuguesa.
Outras publicações menos utilizadas são o “Barème International des Invalidités Post-Traumatiques”, o “Valoración de las Discapacidades y del Daño Corporal”, o “Evaluation du handicap et du dommage corporel: Barème International des Invalidites” e a “Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho”, entre outros.
Todas as publicações que avaliam funcionalidade e capacidade laborativa por doença ou acidente são relativamente complexas e requerem treinamento e habilitação na sua utilização, além de apresentarem limitações referentes às diferentes legislações, mas são muito mais fidedignas e aplicáveis que a simplória Tabela da SUSEP para estabelecer padrões e referências, resultando em melhor uniformização dos laudos periciais, reprodutibilidade das avaliações e redução do risco de vieses e desvios das avaliações funcionais e de capacidade laborativa.
Importante esclarecer que todos os baremos e manuais de funcionalidade são tão somente indicativos e orientativos, não traduzindo jamais uma condição final, única e obrigatória para todos os casos. Todos eles servem como guias, reduzindo distorções interpretativas e trazendo certa coerência e uniformidade nos trabalhos periciais. Repise-se que, do ponto de vista técnico, não existe proporcionalidade nem paralelismo entre o grau de incapacidade funcional de um determinado órgão ou sistema e a incapacidade profissional, o que somente poderá ser avaliado especifica e individualmente no caso concreto, e devidamente justificado pelo perito avaliador.
Conclui-se, portanto, que a Tabela da SUSEP não pode ser utilizada em perícias médicas para determinar o grau de incapacidade laborativa após doença ou acidente, pois considera somente a redução do patrimônio físico do indivíduo para fins exclusivamente securitários, de forma arbitrária e genérica. Os valores descritos nesta tabela, expressos em percentagem, baseiam-se apenas na importância segurada, e não em parâmetros reais de incapacidade funcional de determinado órgão ou sistema. Seus critérios, extremamente simplistas por não levar em consideração as características funcionais e profissionais específicas e individuais no caso concreto, tornam inaplicável sua utilização para determinação da redução da capacidade laborativa efetiva nos casos de doença ou acidente, especialmente em perícias judiciais.
Autorizada a reprodução total ou parcial deste artigo, desde que citada a fonte, nos seguintes termos: GURFINKEL, Valter. A Tabela da SUSEP e suas limitações em perícias médicas. Disponível em <https://medicosperitos.com.br/artigos/49/A-Tabela-da-SUSEP-e-suas-limitacoes-em-pericias-medicas>. Acesso em 23/11/2024.
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